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Os contribuintes e a lei nº 11.196 (Opinião)

19 de fevereiro de 2006

“O artigo 129 da Lei nº 11.196 veio bem a propósito: trata-se de norma interpretativa dirigida eminentemente aos agentes fiscais”

 

A edição do novel artigo 129 da lei nº 11.196/05, resultante da conversão da MP do Bem, tem suscitado diversas manifestações na imprensa. Duras críticas têm sido tecidas ao mesmo, sustentando-se que o dispositivo estaria a permitir fraudes trabalhistas e tributárias, na medida em que os empregados que prestam serviços de natureza intelectual passariam a ser contratados como pessoas jurídicas, obtendo-se, com isso, uma redução artificial da carga tributária, com prejuízos ao trabalhador que deixaria de receber décimo-terceiro salário e Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), dentre outras benesses previstas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e na própria Constituição de 1988.

 

  Ocorre, contudo, que a referida norma não veio a lume para permitir ou legitimar qualquer tipo de ação contra a legislação fiscal ou trabalhista. Sua única função foi a de esclarecer e orientar os agentes da fiscalização para que, no exercício de seus misteres, não desconsiderem a personalidade jurídica de sociedades legalmente constituídas para prestação de serviços intelectuais, com o fito de tributar os integrantes da sociedade (e os seus contratantes) como se fossem pessoas físicas. Para melhor situar-nos, vale conferir a dicção legal: “Artigo 129 – Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no artigo 50 da lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – o Código Civil.”

 

  O artigo 50 do Código Civil, ao qual o dispositivo se refere, dispõe que “em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”

 

  Ou seja: o próprio artigo 129 da lei nº 11.196/05, ao fazer remissão ao artigo 50 do novo Código Civil, já deixa claro que não foi conferido às empresas um passe-livre para a transmutação de relações formais de emprego em contratações de pessoas jurídicas, muitas vezes unipessoais. Se presentes – na relação entre contratante e contratado – os requisitos caracterizadores da relação de emprego (subordinação, pessoalidade, prestação por pessoa física, onerosidade e não-eventualidade), não se poderá falar em trabalho autônomo, desvinculado das regras da CLT, devendo o contratante arcar com as obrigações fiscais e previdenciárias decorrentes da relação de emprego.

 

  Contudo, as empresas legalmente constituídas para a prestação de serviços intelectuais (sociedades de engenheiros, arquitetos, advogados etc) não podem ser descaracterizadas pelos agentes fiscais ao argumento de que o serviço prestado pelos profissionais aos seus contratantes seria regido pelas normas da CLT, com todos os reflexos trabalhistas e tributários daí decorrentes. A uma, porque a presunção de existência de vínculo empregatício é de competência tão-somente do juiz do trabalho; a duas, porque a desconsideração de personalidade jurídica somente pode ser levada a cabo pelo Poder Judiciário se presentes os requisitos legais para tanto; a três, porque a Constituição de 1988 assegura a liberdade de empreender e contratar (artigo 170); a quatro, porque o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (CTN) – invocado pela fiscalização para tributar as sociedades de prestação de serviços intelectuais como se a renda fosse auferida pelas pessoas físicas que as integram – não permite a desconstrução de situações jurídicas consolidadas, mas apenas, e tão-somente, a desconsideração de atos ou negócios jurídicos simulados (o exercício dessa competência depende ainda de lei ordinária definindoos procedimentos para sua execução).

 

  Não cabe à fiscalização pretender tributar as prestadoras de serviços profissionais como se não fossem pessoas jurídicas. Como já tivemos oportunidade de averbar anteriormente, não existe nenhuma limitação – e nem pode existir – a direitos fundamentais, entre eles, o da livre iniciativa, o da auto-organização e o da liberdade de contratar conforme a lei, sem autorização constitucional. Limites contra o contribuinte nestas bases significam arbítrio, tirania, confusão, insegurança e incerteza, que devem ser veementemente repelidos no Estado democrático de direito.

 

  Nessa toada, o artigo 129 da lei nº 11.196/05 veio bem a propósito. Trata-se de norma interpretativa dirigida eminentemente aos agentes fiscais, que não devem se olvidar das premissas nele traçadas. Note-se que, na justificativa de inclusão do artigo em tela na medida provisória que posteriormente foi convertida na lei nº 11.196/05, o Senado assim fundamentava a proposta: “os princípios da valorização do trabalho humano e da livre iniciativa previstos no artigo 170 da Constituição Federal asseguram a todos os cidadãos o poder de empreender e organizar seus próprios negócios. O crescimento da demanda por serviços de natureza intelectual em nossa economia requer a edição de norma interpretativa que norteie a atuação dos agentes da administração pública e as atividades dos prestadores de serviços intelectuais, esclarecendo eventuais controvérsias sobre a matéria”.

 

  A norma não consiste, portanto, em autorização ou convite à fraude, muito pelo contrário – se existente qualquer ilícito, este deve ser coibido, pelos meios próprios para tanto (Poder Judiciário e Ministério Público do Trabalho). No entanto, não cabe à fiscalização pretender tributar as sociedades prestadoras de serviços profissionais como se não fossem pessoas jurídicas. Qualquer entendimento diverso – e é justamente por isso que o dispositivo em análise calha à fiveleta – importará em atuação fiscal fora dos limites legais, violando liberdades essenciaisgarantidas pela Constituição da República.

 

Sacha Calmon

PROFESSOR TITULAR DE DIREITO TRIBUTÁRIO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ)

Fonte: Diário de Pernambuco

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